Desde o primeiro “sim” o cristão convive com um grande mistério. Talvez pelo fato de ao mesmo tempo se tornar servo, filho, amigo, noiva e igreja de um Deus invisível, nasce uma inquietação em seu espírito que durará até o último de seus dias sobre a Terra, um conflito entre sua naturalidade e sua espiritualidade, ou melhor, entre a sua vontade e a vontade do Senhor. Este mistério leva o indivíduo a tomar as mais variadas decisões em tempo e fora de tempo. Tomada uma determinada decisão continua a se inquietar, considerando ter se adiantado e teme as consequências negativas que possam vir. Passado certo tempo, ou tudo vai bem e o temor se dissipa diante do encaixar das peças de um quebra-cabeça ou um profundo arrependimento surge quando tudo à sua volta desmorona. Anos se passam e o cristão não se dá conta de que toda a sua vida foi baseada em legalidade, religiosidade e naturalidade. A graça de Deus foi ignorada, a fé nunca existiu e a vontade plena do coração de Deus nunca se cumpriu.
Mas com um certo homem não foi assim. Mesmo sem ter visto o Messias e nem ter tido conhecimento a seu respeito, agradou ao Senhor a ponto de este mundo não ser digno de seus passos. De suas entranhas vieram Abraão (o pai da fé), Noé (o único justo encontrado sobre a Terra antes do dilúvio) e Jesus Cristo (o próprio Deus na Terra). A Bíblia conta apenas com cerca de 15 versículos sobre este homem, mas a sua conduta inspirou uma das passagens mais famosas das Escrituras. Enoque não tinha Bíblia e não sabia que “a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem” (Hebreus 11:1 ACF).
O conhecimento que você hoje tem em mãos e na mente, ele tinha no coração. Por que falar de Enoque? Porque Ele soube conquistar os céus, e então os céus o conquistaram.
“Enoque andou sempre em comunhão com Deus e um dia desapareceu, porquanto Deus o arrebatou!” (Gênesis 5:24 BKJ).
O que este homem, que é como eu e você, teria feito para andar tão celestialmente sobre a Terra? “Por meio da fé, Enoque foi arrebatado, de forma que não experimentou a morte; e “já não foi encontrado, porquanto Deus o havia arrebatado”, visto que, antes de ser arrebatado, havia recebido o testemunho de que tinha agradado a Deus” (Hebreus 11:5-6 BKJ).
Ele teve fé. Atualmente entendemos a fé como uma simples confiança de que Deus está no controle e nada nos faltará. Não, isto não é fé. Fé é o que faz com que os céus sejam conquistados pelo seu caminhar. É quando a sua postura agrada os olhos do Senhor. É quando a sua posição, seu altar, inflamam o Rei de paixão. É quando nada mais importa para você. É quando, ao invés de se sentir bem porque Deus se agrada em satisfazer os desejos do seu coração, você se sente feliz por se agradar em satisfazer os desejos do coração de Deus: “Jesus disse-lhes: A minha comida é fazer a vontade daquele que me enviou, e realizar a sua obra” (João 4:34 ACF).
É muito mais intenso do que imaginamos. Enoque não foi arrebatado porque teve uma boa vida aos olhos dos homens. Ele foi arrabatado por sua fé, e esta fé agora entendida como um parâmetro do alinhamento da sua vontade com a vontade de Deus ao invés de um simples “acreditar”. Estamos acostumados a apresentar a Deus nossos desejos concernentes ao mundo natural e muitas vezes provamos do favor do Rei. É necessária todavia a compreensão de que Deus corresponde aos nossos anseios mesmo que nunca tenha sonhado com tais coisas para nós. Mesmo que tenha em mãos algo mais nobre! É como se seu coração de Pai ficasse dividido: uma parte sonha com o melhor que o filho jamais imaginou existir enquanto outra se alegra em lhe proporcionar o bom, o qual o filho julga ser o melhor.
“Como um pai tem compaixão de seus filhos, assim o Senhor tem compaixão dos que o temem;” (Salmos 103:13 ACF). Esta é a vontade permissiva de Deus. Recorrer a ela ou não será nossa escolha. Estar liberto é bem mais nobre do que estar liberado. Aquele vive, este sobrevive. Aquele vive no pleno, este no permitido: “Sim, ‘tudo é permitido’, porém nem tudo é proveitoso. Sim, ‘todas as coisas são lícitas’, contudo nem todas são edificantes (1 Coríntios 10:23-24 BKJ).
O problema em questão é mais profundo e está no nosso coração: nossa vontade está alinhada com a glória de Deus?
“Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus” (1 Coríntios 10:31 ACF). Estamos em unidade com isto ou queremos simplesmente ficar bem e satisfeitos? Ninguém fica bem e satisfeito crucificado, e é o evangelho de cruz que Jesus nos ensina a viver: “E dizia a todos: se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me” (Lucas 9:23 ACF). Quem toma a cruz e segue a Cristo não vai a outro lugar senão o Gólgota. Seguir a Cristo com uma cruz nas mãos é trilhar a Via Dolorosa por amor ao Senhor e pelo Reino, entendendo que a vida genuina, abundante e plena custa tudo. Zoê veio depois de Tribulio, e não o contrário. Sondemos nossos corações: o que pedimos está alinhado com a glória de Deus? Estamos trabalhando para que a glória dEle seja conhecida em toda a Terra?
“Entretanto, assim como as águas cobrem o mar, a terra se encherá do conhecimento da glória de Yahweh, o Senhor” (Habacuque 2:14 BKJ).
Como uma câmera ajustada para focar só no Senhor, todo o resto deve ficar embaraçado e importa que O estaremos vendo. Escolher o melhor é focar no Rei e embaraçar o resto. Escolher o bom é focar no resto e camuflar o Rei, pois não O podemos ver sem a Sua santidade. Como a coluna de fogo à noite, quando importava que só Ele fosse visto e seguido, e não os arredores. A certeza das coisas que não se vêem, a fé entendida mais profundamente!
“E quando pedis não recebeis, porquanto pedis com a motivação errada, simplesmente para esbanjardes em vossos prazeres” (Tiago 4:3 BKJ).
Este versículo expressa uma vontade totalmente desalinhada com a glória de Deus. A linha entre o pleno e o permitido, o bom e o melhor, é muito tênue. A beleza e a graciosidade de Deus fazem com que tenhamos escolhas. Desde o começo de humanidade foi assim. O cristão hoje tem decidido viver na condição “escolho o permitido e Deus me abençoa”. Sim, isto é bíblico. Mas também é bíblico que há pensamentos e caminhos mais altos, e de que Ele é capaz de realizar infinitamente mais do que pedimos ou pensamos. Se a fé é a certeza do que não se vê, lembremo-nos de que olhos não viram o que Deus separou para nós:
“Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu,e não subiram ao coração do homem,são as que Deus preparou para os que o amam” (1 Coríntios 2:9 ACF).
Quanto mais alto e profundo decidimos estar, mais difícil. Temos decidido viver no raso, onde tudo é superficial. Mas existe um caminho sobremodo excelente e santo, profundo, que nos faz trocarmos o bom pelo melhor, o permitido pelo pleno, o abalável pelo inabalável, o mundano pelo celestial, o passageiro pelo eterno. É mais difícil, está oculto, profundo e escondido, mas chama-se “extraordinário de Deus”. Jejum e oração, amor, paixão, fome, sede, voracidade, nos levarão a estes níveis. A medida do sacrifício, em amor a Deus, será a medida da glória dEle em/para nós. A medida da busca/renúncia será a medida do mais dEle e do menos de nós. A igreja tem vivido o bom, enquanto há o melhor. É mais difícil, mas é o mais de Deus! E isto deveria bastar para nos motivar a irmos além de nós mesmos. Ele abençoa e dá graça, cumpre promessas, no bom e no melhor. Mas não há glória que se compare ao Seu extraordinário. Ele é justo, então por sua justiça não pode derramar no permitido o mesmo que derramaria no pleno.
“E não vos amoldeis ao sistema deste mundo, mas sede transformados pela renovação das vossas mentes, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Romanos 12:2 BKJ).
A boa vontade de Deus é quando Ele se alegra em satisfazer os desejos do nosso coração. A agradável é quando Ele nos pede algo especificamente e sacrificamos os desejos do nosso coração. A perfeita vontade de Deus é quando Ele nos dá a liberdade de escolhermos e, após discernirmos em espírito, obedecemos o que o Espírito Santo nos indica que satisfará os desejos do coração do Senhor. O Espírito Santo sempre aponta o melhor em discernimento, dando liberdade para o bom. Nós calamos Sua voz, como Israel que matou seus profetas:
“Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tiago 4:17 ACF). Cometemos pecado quando abafamos a voz da verdade, tomando uma direção mesmo sabendo que ela aponta a contrária.
“Quem tem os meus mandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me revelarei a ele” (João 14:21 ACF).
Ter os mandamentos de Jesus e lhes obedecer é fazer cumprir sua vontade plena em todo o tempo. Jesus disse que quem assim procede é porque O ama. E sabemos que quem o ama prova de que todas as coisas cooperam para o seu bem: “Estamos certos de que Deus age em todas as coisas com o fim de beneficiar todos os que o amam, dos que foram chamados conforme seu plano” (Romanos 8:28 BKJ).
No íntimo sempre sabemos a vontade plena de Deus, pois somos templo do Espírito Santo. Mesmo sendo Sua habitação, nosso coração obstinado hospeda o Senhor no pior quarto do hotel, com isolamento acústico. E isto nos impede de vivermos sua plenitude. Como discernir? Como exercer o pleno de Deus? Temos o Espírito Santo em nós, e Ele e Deus Pai são um. Ou seja, a resposta habita em nós. A resposta para todas as coisas nos acompanha dia a dia. A santidade faz com que vejamos a Deus, a intimidade nos apaixona por Ele e a unidade faz com que sua vontade plena se cumpra em nós. A vontade plena de Deus precisa apenas ser manifesta! A intimidade com o Senhor revelará o profundo e o escondido, e a sua palavrá separará o bom do melhor em nossas vidas. Seremos aptos para discernir o pleno do permitido mediante o exercitar do ouvido espiritual, da busca por comunhão. É tempo de uma metanóia, uma mudança de mente com relação à nossa conduta. Deus tem um desígnio muito claro para todos nós, e a medida desse desenvolver será nossa escolha. Seremos crucificados com Ele na medida da nossa paixão. Hoje, a paixão de Cristo deve ser a nossa paixão.
“O coração do homem planeja o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos” (Provérbios 16:9 ACF). Que este dirigir dos passos seja sobre a Via Dolorosa, que além da cruz conduz à glória do Senhor. “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim” (Gálatas 2:20 ACF).
A cruz precede o céu! A vida de cruz traz o céu à Terra. Sempre foi assim. Enoque tinha a cruz no coração e por isso foi arrebatado. Fé é ter a cruz no coração! Jesus subiu aos céus após ter ido à cruz por amor. Combatamos o bom combate (contra nós mesmos), completemos a carreira (que conduz ao Calvário e depois aos céus) e guardemos a fé (que alinha a nossa vontade com a vontade plena de Deus)!
Gabriel Ferrari
Igreja de Florianópolis – Proclamando a Verdade